“A verdade é uma só, as versões são muitas”, diz a escritora Gloria Perez em um depoimento na série documental “Pacto brutal: O assassinato de Daniella Perez”, que relembra o crime que chocou o Brasil há quase 30 anos. Em 28 de dezembro de 1992, a atriz e bailarina Daniella Perez deixava um dia de gravações da novela “De corpo e alma”, de autoria de sua mãe, quando foi encurralada pelo colega de elenco Guilherme de Pádua e sua então esposa, Paula Thomaz. Imobilizada e levada para um local ermo, Daniella foi morta com 18 punhaladas. O caso teve grande cobertura na mídia, rivalizando em atenção com a renúncia do então presidente da República Fernando Collor, que ocorreu no dia seguinte ao assassinato, e com o público acompanhando as investigações e o julgamento quase como se estivesse seguindo uma ficção macabra.
Com cinco episódios de cerca de uma hora de duração, a produção que estreia amanhã na plataforma HBO Max tem direção de Tatiana Issa e Guto Barra, vencedores do prêmio Emmy pela série documental americana “Immersive World” (2019). À época do crime, Tatiana trabalhava como atriz na novela das sete “Deus nos acuda”, ao lado de Raul Gazolla, então casado com Daniella. No início de 2021, Tatiana decidiu procurar Gloria Perez.
— Mandei uma mensagem, era meia-noite, em que dizia que, se ela um dia quisesse fazer um documentário sobre Daniella, eu me colocava à disposição para contar essa história. Mas que entenderia, e respeitaria, claro, se ela não quisesse falar sobre isso — lembra a diretora, que recebeu a resposta da autora na mesma madrugada, em que elogiava seu trabalho como documentarista e dizia que confiava nela.
Logo no início da série, os realizadores destacam que a intenção é focar em fatos e fugir da versão folhetinesca que se criou a partir da cobertura sensacionalista do caso e da junção, na cabeça das pessoas, da vida real com a trama da novela, em que os personagens de Daniella e Guilherme de Pádua tinham um envolvimento amoroso. Em determinado momento do julgamento, o assassino disse que a atriz o assediava nos bastidores. Com a imagem dos dois se relacionando em cena, muita gente passou a acreditar que eles tinham uma relação na vida real.
— O que me fez considerar que era o projeto certo foi que a proposta era fugir do sensacionalismo para retratar a verdade dos autos. Era o que eu queria: que as pessoas entendessem por que as muitas versões fantasiosas apresentadas pelos assassinos não se sustentaram diante do júri, e porque os dois foram condenados por homicídio duplamente qualificado — conta Gloria. — O caso foi tratado como uma extensão da novela. Se o foco vai para os autos do processo, não há espaço para ficção. A realidade se impõe.
A autora — que no momento trabalha no texto da próxima novela das 21h da TV Globo, “Travessia”, que substituirá “Pantanal” — faz questão de ressaltar que não recebeu qualquer retorno financeiro para participar da série sobre Daniella. Além de conceder 20 horas de entrevistas, ela abriu seu arquivo pessoal e ajudou os realizadores a encontrar pessoas importantes no processo e na investigação.
— Mostrar a verdade do processo é resgatar a Dany. Isso eu devo a ela como mãe — diz Gloria. — Foi duro demais reviver passo a passo aquele dia, aqueles anos. Não que eles estivessem longe. Essas vivências são tatuagens na sua memória e no seu sentimento. Estão sempre latejando. O tempo não cura nem ameniza nada.
"Fiquei bem mexido"
“Pacto brutal” conta com depoimentos de várias pessoas próximas a Daniella ou envolvidas diretamente no processo. Além de Gloria e de Raul Gazolla, a produção escuta nomes como Claudia Raia, Fábio Assunção, Maurício Mattar, Cristiana Oliveira e Eri Johnson, além de investigadores, procuradores, testemunhas, jornalistas e advogados.
— Já vi várias séries de crimes, e às vezes elas se repetem. Neste caso, são cinco capítulos em que você não consegue deixar de prestar atenção, são sempre fatos novos — ressalta Gazolla, que revela ter tido dificuldade de concluir o primeiro episódio. — Fiquei bem mexido. Relutei um pouco para entrar no segundo episódio, porque o primeiro me deu um ippon, mas como era algo mais técnico, com entrevistas dos policiais, foi mais fácil.
Por opção dos diretores, Guilherme de Pádua, Paula Thomaz e respectivos advogados não foram ouvidos pela série.
— No documentário, criticamos muita coisa, como a sociedade machista e a eterna culpabilização da vítima. Mas uma de nossas principais críticas foi sobre a forma como a imprensa tratou o caso, dando sempre muito espaço para que os assassinos dissessem o que quisessem. Durante 30 anos, eles puderam contar a história da maneira que queriam, de forma fantasiosa e errada. Não poderíamos criticar e fazer a mesma coisa — destaca Tatiana Issa.
Também roteirista da produção, Guto Barra reforça:
— Existe uma distinção entre o praticado no jornalismo tradicional, com essa coisa de ouvir os dois lados, e o que se faz em documentários, que podem ter um ângulo, uma visão. A nossa história é baseada nos autos do processo e tudo que foi provado. Mas as pessoas são livres para fazer outras narrativas, se quiserem.
Na justiça
A série se divide entre depoimentos, reconstituições e vasto material de arquivo. A produção relata com detalhes o dia do crime, as horas seguidas à descoberta do corpo, várias etapas da investigação e do julgamento, além da luta de Gloria para promover a mudança na Lei de Crimes Hediondos, que à época não incluía em seu rol o homicídio qualificado. As diversas versões contadas por Guilherme e Paula ao longo do processo, e em entrevistas posteriores à imprensa, são citadas como forma de melhor entender a personalidade do casal, que se voltou um contra o outro em determinado momento do julgamento.
Hoje, Guilherme de Pádua é pastor de uma igreja batista em Belo Horizonte. Nos últimos anos, deu entrevistas sobre o caso. Em 2020, após a repercussão negativa de uma participação em ato pró-Bolsonaro, em Brasília, ele desativou os perfis em redes sociais e em canal no YouTube. Há poucos dias, no entanto, voltou ao YouTube para desmentir que havia abandonado as redes em razão da série. Ele comentou que considera as mesmas ferramentas importantes para “se defender de acusações e perseguições”.
Paula Thomaz — que após o casamento com o advogado Sérgio Peixoto agora atende por Paula Peixoto (inclusive, é assim que Gloria Perez se refere a ela hoje) — vive discretamente. Em 2021, voltou à evidência diante da notícia de que estaria preparando a filha mais nova para ser atriz. Paula e Guilherme foram condenados a 18 e 19 anos de prisão, respectivamente, mas deixaram o regime fechado em 1999, após cumprirem um terço da pena (menos de sete anos).
Por O GLOBO
Redação Rádio domm